Fui, meio a contragosto, assistir ao filme Get Out com as minhas filhas. Filmes de terror nunca foram meu forte, mas mesmo assim resolvi encarar e que ótima decisão!!
Em um ano histórico, com uma das maiores premiações da história do Oscar a filmes estrelados e produzidos por afro-americanos, além de histórias que abordam a questão racial no país, Get Out passou completamente despercebido. (Confesso que ainda não assisti à Moonlight, grande campeão…). Mas está se firmando como um dos maiores sucessos de bilheteria e crítica dos últimos tempos, já que despretensiosamente, usou o plot do terror/suspense, para ir a fundo sobre a maior cicatriz americana: preconceito racial!
O filme é escrito e produzido por um afro-americano e a história se resume a um casal interracial (ele negro, ela branca) que resolvem passar um final de semana na casa da família dela, em um típico subúrbio rico americano. Mais não posso falar, porque estragarei a surpresa.
Mas, sem escorregar nos “spoilers” e deixando de lado o tom espetacular de produções de suspense, o filme questiona muitíssimo bem o quanto ainda os EUA é um país claramente divido pela cor de pele, com os brancos usando de todos os meios para afirmarem seu poder.
Saindo do mundo mágico do cinema e embarcando na vida real, posso tentar definir o que estou dizendo a partir da minha experiência pessoal. Ouvi recentemente de um americano: “não se preocupe com o novo governo, você é branca, pele e olhos claros, e isso é um passaporte de segurança”.
Poderia até ser engraçado se não fosse trágico e a pessoa em questão, não estava sendo irônica ou agressiva, mas simplesmente falando a verdade: americanos tem um sério problema com tom de pele! Chega a ser patético, além de uma ignorância profunda. Parentes meus, por exemplo, com a mesmíssima descendência, por terem a pele mais escura já não seriam considerados brancos por aqui…
Acreditem, ser latino, muçulmano, ou ateu, só será um problema se a sua cor for mais escura. O tom da pele, vem antes de qualquer coisa nesse país, e por mais que me digam o contrário, isso é o que vejo na prática. Cidadãos afro-americanos ainda sofrem tanto quanto imigrantes não documentados. Para a supremacia branca que domina os EUA, os verdadeiros donos dessas terras são os brancos e ponto final.
Se falarmos em questões burocráticas, onde é preciso ser documentado, saibam que para quase qualquer dessas coisas (escolas, consultórios médicos, vagas de emprego, etc.) que você fizer nos EUA, antes de tudo é preciso responder a um formulário, onde a primeira questão é qual sua raça e origem. Latinos e hispânicos por exemplo, não são considerados “white”, mesmo que sejam descendentes de alemães com olhos transparentes e pele rosada. Somos antes de qualquer coisa, definidos pela nossa raça e isso explica muito dos valores da cultura norte-americana.
Há 8 anos atrás, o mundo se encheu de esperança, ao assistir à uma família negra assumir a Casa Branca. Infelizmente o tempo passou e apesar de algumas mudanças significativas, o preconceito continua forte e enraizado e voltou com uma força assustadora depois da campanha e posse de D. Trump. Organizações tenebrosas como a Ku Klux Klan estão mais fortes do que nunca, tendo inclusive membros atuando em papéis primordiais dentro da nova administração política.
Depois de um tempo de respiro, o mundo parece retroceder e entrar de novo em um ciclo de ódio e intolerância.
O que salva, como sempre é a arte! Seja a cinematográfica e hollywoodiana, como vimos esse ano, com produções super engajadas, ou seja a arte visual, com artistas bravos e persistentes que não desistem de lutar por essas questões.
Um exemplo magnífico disso é uma série recente de Adriana Varejão, na minha opinião a maior artista brasileira da atualidade.
Chama-se Polvo.
Adriana encomendou a um grupo de retratistas chineses vários retratos seus pintados a óleo, e aqui já temos uma questão suculenta sobre reprodutibilidade e autoria, que nem irei abordar agora…
Depois ela fez inúmeras intervenções, valendo- se de uma paleta de cores de pele desenvolvida por ela mesma, mostrando a diversidade de tons da raça humana. Além disso, Adriana, nomeou essas cores a partir de pesquisas com brasileiros, perguntado como que definiam a sua cor. Os nomes chegam a ser hilários como : “burro quando chove”, “encerada”, “fogoió”, “queimada de sol”, etc.
Inegável que o Brasil também tem um ranço racista extremamente forte, pois assim como os EUA carrega o carma nojento da escravidão. Contudo, brasileiros levam de forma mais leve essa questão e ainda não sei se isso pode ser considerado uma vantagem, deixo isso para os mais letrados no assunto…
A proposta de Adriana é justamente essa, nomear cores para além das definições biológicas, que chegam a beirar a desumanidade, como mencionei sobre os formulários americanos. O resultado é forte, belíssimo e reflexivo, como todos os trabalhos dela.
A série foi exibida no Galpão Fortes Vilaça em S. Paulo e na Lehmann Maupin Gallery em Nova Iorque.
Obrigada por ler até aqui, comente, compartilhe e vamos enriquecer essa discussão. Até a próxima 🙂
Texto lindo!É sempre um prazer ler seus textos!
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